Futuro Hoje

This is a struggle over life and death, but the boundary between 
science fiction and social reality is an optical illusion.
Donna Haraway, A Cyborg Manifesto, 1991


Ando a a ganhar coragem para este texto, que tanto adio por estar em negação com muitas das situações actuais no que diz respeito à tecnologia e sociedade. O futuro que tanto imaginámos nunca esteve tão perto, é hoje. Poderia dizer que ninguém prevera isto, mas mentiria pois, tanto na Moda (drones utilizados em desfiles da Fendi ou da Dolce and Gabbana, Irina de mão dada com um robot em  Philipp Plein) como no Cinema (Blade Runner, Her, Ex-Machina, Westworld...), nos mostraram possibilidades imaginadas de quem seríamos, que objectos rebuscados fariam parte do nosso dia a dia e como seriam as relações humanas. Estas possibilidades estão a ser efectivadas e enquanto muitos assistem a todo este desenvolvimento tecnológico acompanhados de pipocas e esgares fascinados, eu olho com terror.


De repente, com o computador ao colo e a espreitar os anúncios da TV vejo o Cristiano Ronaldo a ter uma conversa com a robot Sophia. Sim, aquela que esteve presente na Web Summit do ano passado, em Lisboa. Este encontro deveu-se ao lançamento de uma nova box da MEO, cujo nome será também Sofia. A robot é apenas uma manobra de distracção made in Arábia Saudita, com direito a cidadania, a viajar por todo o mundo, trabalhar, vestir o que quer sem cobrir a cabeça... Mesmo que se faça acompanhar de um tutor masculino, como é obrigatório para qualquer mulher saudita, a liberdade desta humanóide vai muito além de qualquer cidadã humana naquele país. Inclusive, Sophia fala e solta risinhos nervosos como qualquer caricatura de uma mulher, desenhada por um homem, faria. Tiradas óbvias e um falso sentido de humor juntam-se a tudo o que aqui é postiço, programado por engenheiros e mais que ensaiado nos bastidores do espectáculo.

Miquella Sousa
Já conhecem a Miquella Sousa? Pelo menos 783 mil pessoas já e seguem-na no Instagram. A influencer é mesmo digital, no sentido mais literal possível, pois trata-se de uma mulher desenhada a computador. De origem hispânica e brasileira, mas com residência em Los Angeles, esta personagem vive como uma it girl, percorrendo os melhores spots, vestindo as marcas mais conceituadas e usando as maquilhagens mais actuais. A conta de Instagram é constantemente actualizada mas não se encontra o rasto ao autor - ou autores - desta simulação virtual. Bem ao estilo millennnial é uma activista de causas sociais como as questões raciais ou LGBT. A plataforma acaba por servir como um megafone de tendências, marcas, civismo, mas também de música pois ao que parece Miquella canta. Conhecemos isto de entidade virtual através dos Gorillaz ou de Hatsune Miku, a cantora que abriu concertos da Lady Gaga e foi vestida por designers de topo. Enquanto a banda nos fazia lembrar cartoons ocidentais e era encabeçada por Jamie Hewlett e Damon Albarn,  Miku foi criada ao estilo Manga pela Crypton Future Media, uma empresa japonesa de música e tecnologia. A Louis Vuitton "contratou" Lightning, personagem de Final Fantasy, para protagonizar uma das campanhas de 2016. Em todos estes casos a nossa percepção passava a mensagem de que aqueles produtos eram desenhos, animações, entretenimento, marketing. Miquella vai além disso pois está desenhada de forma hiper realista, salta completamente do 3D e move-se no mundo real... ou pelo menos é isso que nos parece. Em entrevistas nunca se apresenta como uma ferramenta manuseada por alguém, mas sim como uma jovem atenta ao mundo e com opiniões próprias. Revela quais as suas marcas favoritas, afirmando que até muito recentemente nenhuma lhe pagava pela publicidade e refere Reese Blutstein - uma rapariga de carne e osso da qual já falámos aqui - como uma das suas inspirações.

Shudu

Shudu foi apresentada ao mundo pela Fenty Beauty como a primeira supermodelo digital. Criada pelo fotógrafo Cameron-James Wilson, este avatar gerou uma polémica intensa por representar uma mulher negra. Como sabemos, a indústria da Moda tem sido acusada de não praticar a diversidade racial aquando das escolhas de casting e o facto de Wilson ser caucasiano acentua a falta de consciência ética. Quando tantas manequins esperam uma oportunidade para trabalhar este homem cria digitalmente uma mulher cujos rendimentos serão totalmente entregues a ele, pois ela não existe. A gravidade da situação é tão densa que compreendemos o porquê dos criadores de Miquella permanecerem no anonimato. Estes exemplos não são os únicos a conquistar público, pois no espectro masculino temos Blawko, cujo design é um pouco menos sofisticado e o número de seguidores bastante inferior. O facto da representação feminina estar mais vincada leva-nos às velhas, porém actuais, preocupações da utilização da mulher enquanto objecto. Indivíduos utilizam a força que uma imagem feminina contém e utilizam-na a seu bel-prazer.

Gucci

No último desfile da Gucci vislumbrámos o que o futuro pode ser, com a comparência de cyborgues  que transportavam a réplica da sua cabeça, que tinham três olhos ou de animais singulares num cenário hospitalar. Alessandro Michelle tomou a obra A Cyborg Manifesto de Donna Haraway (e talvez Game of Thrones) como ponto de partida para desenvolver esta colecção que une harmoniosamente passado-presente-futuro. A ideia do desfile era recriar um amanhã próximo, onde as barreiras sociais estão pouco nítidas e não nos regemos por símbolos religiosos ou culturais como outrora. Este amanhã aceita todas as identidades sem códigos restritos, une todas as crenças, raças e proveniências sem dividir e estratificar. É a optimista concretização de aldeia global futurista na qual não há espaço para expressões como apropriação cultural. Também a Moschino concretizou a ideia de universo global, unindo passado e futuro, recorrendo à estética dos 60s e adicionando manequins estilizadas como seres de outro planeta que representavam a Teoria da Conspiração de Jeremy Scott: Jackie Kennedy era na verdade um alien.

Moschino

A geração jovem actual valoriza a justiça e a igualdade, valoriza rever-se no outro e olhar para os seus heróis horizontalmente e não de baixo para cima. Acabamos por compreender a aceitação destas imagens gerados por computador e das materializações de ficção científica contemporânea, visto que são o futuro-agora, vestido como um de nós, com os mesmos interesses e representativos de uma tecnologia computacional mas também emocional e social que considerávamos avançada. De momento o caminho está livre para mais experiências e resta-nos esperar para saber se nós - ou os nossos descendentes - ainda vamos assistir ou se isto é só uma tendência passageira.

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