Feminismo & Música | Diz-me o Que Não Ouves, Dir-te-ei Quem És


Foto de Caylon Hackwith para Idun


Há músicos que não oiço, por opção. Infelizmente essa lista está a crescer. Não que me incomode a redução de faixas na minha biblioteca musical. O que me incomoda é a devoção e apoio a predadores e agressores. O que me importa é a idolatração a quem já tem o poder, permitindo-lhes um estatuto heróico e perpetuando o medo, o silêncio e o trauma nas pessoas lesadas. Estas palavras vêm no seguimento do texto que escrevi sobre a Britney. Na verdade os dois textos eram um só, mas decidi dividir para que fossem de leitura mais leve (tenho dúvidas que neste tópico tal seja possível)... Deixo em baixo músicos que tenho todo o gosto em silenciar e as razões pelas quais o faço. Para mim isso é colocar em prática o feminismo mas também ser solidária para com as vítimas.


Chris Brown

Em 2009 Chris Brown agrediu Rihanna, sua namorada na época. Foi condenado a seis meses de trabalho comunitário e cinco anos de liberdade condicional. Em 2013 reatou a relação com a ex-namorada. Os incidentes violentos repetiram-se ao longo dos anos, em diferentes circunstâncias e com diferentes pessoas. A certa altura o cantor foi diagnosticado com bipolaridade e a sua defesa justificou assim muitos dos seus actos. Em 2017 foi acusado novamente de violência doméstica. Em 2019 foi acusado de violação. Em 2021 voltou a ser acusado de agredir outra mulher. Os desfechos destes últimos eventos estão por definir, mas a palavra "problemático" é o adjectivo mínimo que podemos dar a Brown. O término da sua carreira, porém, nunca se definiu. Lançou inúmeros álbuns e fez inúmeras colaborações, tanto com artistas femininas como Nicki Minaj ou Rihanna (?!), como com artistas masculinos: David Guetta, Dj Khalid, Drake...


Michael Jackson

De cada vez que uma notícia sobre a custódia de Spears (por Spears) me entra pelos olhos, lembro-me das imagens de Michael Jackson, exibindo, de forma completamente insegura, o seu filho bebé à janela de um hotel, em 2002. Não estão a perceber? Eu explico... Este homem, enquanto artista, foi muito reconhecido, mas todas as camadas da sua vida pessoal também foram igualmente mediáticas. Estou a referir-me ao seu parque de diversões privado, Neverland Ranch, aberto em 1987, para onde levava rapazes menores, escolhidos por si. Assim construía uma relação de mentor para com os meninos, prometendo às famílias ajudar nas suas carreiras. Anos mais tarde algumas destas crianças acusaram MJ de abuso sexual. Apesar destas acusações, do comportamento errático e dos visíveis problemas psicológicos, a família Jackson ou o Estado nunca se interpuseram legalmente nas suas escolhas de vida (enquanto adulto). Temos aqui um homem que teve liberdade e poder para fazer o que quis, a si e aos outros, nunca sendo contestada a sua (ir)responsabilidade para consigo ou para com os três filhos. Após a sua morte, a base de fãs mantém-se fiel, sendo um dos ícones musicais mais acarinhados à escala mundial.


R Kelly

Durante mais de 20 anos este predador sexual foi acusado de inúmeros abusos. Apenas este ano foi declarado culpado. Mas vamos ao suposto início... Em 1994 casou com Aaliyah, que na altura tinha apenas 15 anos. Kelly, com 27 anos então, subornou um funcionário público para obter um cartão de identidade falso para a namorada. O casamento foi anulado passados alguns meses. Em 1996 volta a tribunal por manter uma relação de anos com uma menor que o acusa de danos pessoais e problemas emocionais. Seguem-se mais casos de assédio em ambiente laboral, pedofilia, coação, gravação de actos sexuais sem consentimento, pornografia infantil... Foi chegando a acordo em muitos casos e noutros foi declarado inocente. Durante todo este período o cantor trabalhou, lançando grandes êxitos musicais. Em 2017, jornalistas de investigação acusaram-no de ter um culto sexual, com várias mulheres muito jovens como suas escravas. Manipulou-as como seu suposto mentor, afastou-as completamente das suas famílias, fê-las passar fome, abusou sexualmente delas e obrigou-as a actos sexuais entre si. No ano 2018 surge o movimento #MuteRKelly, cujo objectivo era pressionar as editoras, plataformas de streaming musical e promotores e não trabalharem mais com o cantor, devido ao seu historial de agressor. Este continuou a trabalhar e a responder de forma fria e arrogante a perguntas relativas às acusações. Foi apenas devido ao lançamento de um documentário, em 2019, que a sua editora o deixou e concertos foram cancelados. Neste ano Kelly vai novamente a tribunal para enfrentar dezenas de queixas de agressão sexual (maioritariamente a menores) e tráfico humano e é finalmente preso enquanto aguarda pela sentença. Foi declarado culpado. Depois deste parágrafo, que me custou tanto escrever, ainda serão capazes de ouvir "I Believe I Can Fly"?


Marilyn Manson

O intérprete de "The Beautiful People" é acusado de vários crimes sexuais, à semelhança de R Kelly. Em 1998, na sua auto biografia, descrevia cenas sexuais abusivas com fãs, que em tudo se aliavam à sua imagem excêntrica, podendo ser somente parte da sua estratégia de marketing. Seguiram-se acusações de má conduta e assédio sexual, no início dos anos 2000. O próprio revelou os seus pensamentos e inspirações violentos que o levavam a compor, sendo a sua infeliz musa a ex-namorada Evan Rachel Wood. A conduta teatral do músico funcionou como uma camuflagem às cenas da vida real. Mas os boatos de assédio adensavam-se e em 2018 Wood testemunhou a sua experiência pessoal, no Congresso. Numa tentativa de garantir uma declaração de direitos para sobreviventes de agressão sexual, a actriz partilhou ter sido vítima de violência doméstica, lavagem cerebral e violação, por parte de um companheiro. Não disse nomes, mas as datas coincidiam com a época em que esteve numa relação com Manson. Soube-se na altura que existiam várias queixas apresentadas contra o cantor, que nunca andaram para a frente devido a falta de provas. Em 2019 Evan volta a testemunhar as agressões vividas e refere as marcas com que ficou: stress pós-traumático, dissociação, ataques de pânico, terror nocturno, agorafobia, perturbação do controlo de impulsos, dor crônica, entre outros sintomas. Em 2021 enfrenta o medo de retaliações e partilha no seu Instagram o nome do seu abusador: Brian Warner, mais conhecido como Marilyn Manson. Após este acto de coragem mais 4 mulheres partilharam terem sido vítimas do artista, sofrendo ainda hoje de patologias semelhantes a Wood. Um dos resultados destes testemunhos foi o facto da editora musical e a produtora televisiva que estavam vinculadas a Manson, desistirem de trabalhar com ele. Testemunhos de má conduta, assédio e violação multiplicaram-se e Esme Bianco, ex-namorada do cantor, deu também o passo de remexer no passado, contando o inferno vivido com o predador sexual. Acabou por processá-lo, tal como mais três mulheres.


Kanye West

A editora e a produtora que trabalhavam com Marilyn Manson até há pouco tempo desistiram desse vínculo. Em contraste, Kanye West achou que fazia todo o sentido incluir o alegado predador no seu recente Donda, com a co-criação de duas canções e a presença num dos espectáculos de apresentação do álbum. Nessa noite também marcou presença em palco DaBaby, que teceu, anteriormente, comentários homofóbicos. Sendo uma manobra de marketing controversa, este acontecimento teve uma repercussão muito negativa para West, que ignorou as opiniões e vestiu publicamente uma t-shirt de merchandising de Manson. A misoginia é vista como recorrente no mundo dos rappers e Kanye não é excepção. Mas associar-se desta forma a um alegado predador e a um homofóbico fora do armário foi a gota de água para muitos fãs. A paciência foi-se esgotando para lidar com este Divo do rap, pois vejamos a restante lista: inúmeras brigas com colegas, apoio a Trump, posicionamento feroz contra o aborto, ataques à mulher e restante família no Twitter... É caso para dizer que o diagnóstico de bipolaridade não pode desculpar tudo o que o rapper faz, diz e escreve.


Estes egos edificados pelos fãs, parecem indestrutíveis, pois quem os consagrou é também quem tem o poder de os abalar. Se existe uma razão válida para boicotarmos um artista, que seja a violência psicológica e sexual. Podemos ser feministas e continuar a ouvir (e apoiar) estes cantores? Para mim a resposta é não. 


NOTA: Podem também ouvir-me falar sobre este tópico no meu Podcast - Ana (Super Nervosa) Amaro.

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